Apenas se ouvia o som crocante dos pés a enterrarem-se no manto branco. Já lhe era difícil caminhar nos nevões que ultimamente marcavam a época. As botas de couro, gastas, também já deixavam passar o frio.
Ás costas levava a mochila com algumas provisões para a noite que se avizinhava , alguém lhe tinha dado um bom pedaço de galinha e um pão. Com mais umas batatas que tinha, faria com certeza uma refeição digna de uma noite de Natal.
Para o velho Lázaro iria ser mais uma noite tranquila e só.
Fora assim tantos anos que já nem notava a diferença. Mas sentia saudade, saudade da melhor companhia, a mulher e o filho. Todo aquele calor que sentia não só naquela noite, mas também em todo o sempre em que partilharam dias, noites, anos...
Passaram-se vinte e seis anos desde a ultima vez que os vira.
Ao caminhar para casa Lázaro parou por instantes na pequena aldeia coberta de neve. Todos tinham um leve sorriso na cara, sentia alegria no ar. Todos se preparavam para a noite que se avizinhava, fria. Mas também sabia que por muito fria que a noite fosse, nas suas casas haveria calor, o calor humano de partilhar.
Todos tinham alguém a quem dar um abraço e receber em troca, menos ele.
Lázaro sentia-se só, esquecido no mundo. Alguém seu conhecido o convidara para passar a consoada com a sua familia, mas ele não se sentia à vontade para o fazer e depois viviam longe.
Dirigiu-se para casa. A noite fez-se ver assim como as temperaturas negativas. O vento soprava na rua empurrando a neve contra os vidros das janelas.
Ao chegar, a velha casa de madeira estava fria. Foi buscar uns pedaços de madeira que acondicionara para o Inverno e colocou-os no fogão de ferro que jazia a meio da divisão, em pouco tempo o clima aqueceu. No chão um balde, aparava de quando em vez, as gotas de água da neve que derretia e que teimava cair devido a uma insignificante brecha no telhado. Teria que o remendar, mas agora só o poderia fazer quando o Inverno passasse.
Acendeu algumas velas para o alumiar.
Da mochila tirou o pedaço de carne e o pão, procurou as batatas que mantinha guardadas e descascou-as. Num velho tacho colocou água e juntou-lhes os tubérculos, num outro colocou um pouco de gordura, ervas do mato para dar sabor e a carne.
Lá fora a neve tocada pelo vento continuava a assolar as casas com as suas janelas e um frio insuportável fazia-se sentir até nos ossos.
Limpou a mesa e duma gaveta retirou uma toalha para a cobrir. Era vermelha com decorações a finos fios dourados. Fazia-lhe lembrar Magdala, a sua mulher, que tanta vez fez aquele gesto na consoada, o de requintar a mesa no Natal com o melhor serviço e a melhor comida. Lázaro fez igual, nunca o deixara de fazer desde que lhe retiraram Magdala .
Entretanto a refeição estava pronta a comer. Colocou ainda um pequeno jarro de vinho na mesa, era a única bebida que lhe aquecia o peito.
O usado Lázaro preparava-se agora para comer a refeição que preparara. Mas algo lhe chamou a atenção, parecera-lhe ter ouvido alguém bater à porta.
Escutou com mais atenção e não se enganara. Lázaro estranhou aquela presença.
"Quem é?" perguntou.
Do outro lado da porta uma voz respondeu-lhe: "Alguém que procura uma refeição..."
Lázaro receou abrir a porta. Recordou-se de Magdala, não pela noite em questão, mas pela forma que a levaram e já se sentia velho para se poder defender como outrora.
Do lado de fora voltou a ouvir: "...ou até mesmo um lugar quente onde passar a noite!"
Depois disto Lázaro repensou e os seus medos partiram. A comida que fizera chegava à vontade para mais uma pessoa, não tinha nada a perder.
Abriu a porta e deparou-se com um senhor mais velho que ele de barba curta e branca. Um capuz tapava-lhe a cabeça. Entrou e agradeceu a Lázaro.
Numa das mãos trazia uma garrafa com vinho. Tirou o capuz e só nessa altura reparou nos olhos profundamente azuis. Transmitiam-lhe serenidade.
Chamava-se Nikolaos e estava perdido. Sentaram se à mesa, comeram e conversaram durante várias horas.
Para Nikolaos aquela era a sua noite.
Para Lázaro aquela seria uma noite... diferente, pelo menos já tinha com quem falar e já sorrira um pouco.
O velho de barbas perguntou a Lázaro "Porque razão não estás com a tua família?"
Lázaro entristeceu-se, olhou o chão e pausou por momentos a conversa, depois contou a Nikolaos o que lhes tinha sucedido: "Há vinte e seis anos vivia do outro lado das montanhas com a minha família quando um dia os soldados vieram a cavalo e invadiram a pequena aldeia onde vivíamos. Disseram-nos que precisavam das mulheres e jovens. Separaram os homens das suas famílias e agruparam-nos à parte. Depois mataram-nos, apenas estou safo porque me fingi de morto no meio de tantos que conhecia... e tive que sepultar!!"
Nikolaos percebera agora o porquê de tanta dor nos olhos do caseiro.
Enquanto isso bebiam vinho, "É fantástico este teu vinho!" dizia Lázaro.
Já no cadeirão gasto e de copo na mão, Lázaro começou a sentir o cansaço no corpo, os olhos pesavam-lhe.
Nikolaos continuava à mesa, sentia-se confortável.
Lázaro adormecera com o som da pequena tempestade que corria lá fora.
Passaram-se horas desde que se sentara ali e descansava, mas algo o acordou.
Chamou por Nikolaos. Olhou em seu redor e encontrou-se de novo sózinho.
Ouviu bater: "Deve ser Nikolaos... saiu e agora quer entrar de novo!". Levantou-se, dirigiu-se para a porta e abriu-a.
Não havia ninguém na rua, pensou: "Estranho, pareceu-me ouvir de novo alguém bater!"
Voltou a fechá-la. Ao virar costas ouviu de novo o barulho de alguém que batia do lado de fora. Pegou no pequeno candeeiro, abriu de novo a porta e duas figuras encapuzadas aguardavam-no do lado de fora.
Lázaro ficou expectante: "Sim... posso ajudá-los?"
Do outro lado alguém o chamou com voz cansada :"Lázaro?"
Reconheceu-lhe a voz, o timbre, a doçura. Uma das figuras levantou a cabeça e deixou a descoberto os olhos.
"Magdala?" perguntou Lázaro.
Ouviu ainda um nome que só uma pessoa lhe tinha chamado: "Pai?"